quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Astrofísico faz balanço das contribuições do telescópio Hubble

Equipamento será aposentado nos próximos oito anos, quando outro muito mais potente chegará ao espaço.

SÃO PAULO - O astrofísico romeno Mario Livio realiza um balanço das contribuições do telescópio espacial Hubble, que será aposentado nos próximos oito anos, e dá detalhes do projeto James Webb: um equipamento muito mais potente que chegará ao espaço em 2014.
No projeto desde 1991 - um ano depois do lançamento do telescópio -, Livio atuou como diretor da Divisão Científica do Hubble. Há dois anos é responsável pela divulgação das descobertas. Em visita ao Brasil para o lançamento da Agência Cultural Arena Ideias e para um ciclo de conferências no Planetário do Ibirapuera, Livio concedeu entrevista exclusiva ao Estado.


Quais foram as principais contribuições do Hubble para a ciência?
A descoberta mais importante foi a energia escura. Desde os anos 20, sabemos que o universo está expandindo. Mas, até 1998, acreditávamos que a velocidade de expansão estava diminuindo. O Hubble mostrou que está acelerando por causa da energia escura, uma força que atua sobre os astros. Não sabemos a origem dessa energia, mas vemos os efeitos. Há também outra contribuição importante: graças ao Hubble descobrimos a composição da atmosfera de alguns planetas fora do Sistema Solar. Identificamos substâncias como carbono,
oxigênio e metano.


Houve cinco missões para consertar o Hubble. A última ocorreu em maio. Até quando vai funcionar?
O Hubble deve permanecer ativo por mais cinco anos. Talvez sete ou oito. Em maio, instalamos dois novos equipamentos: uma câmera capaz de registrar todas as frequências da luz - do infravermelho ao ultravioleta - e um espectrógrafo. Ao olhar para o céu, vemos o passado, pois a luz de uma estrela distante costuma demorar milhões de anos para chegar aqui. Com as câmeras do Hubble, podíamos ver galáxias com 1 bilhão de anos. Com a nova câmera instalada em maio, veremos imagens de quando os astros tinham apenas 600 milhões ou 700 milhões de anos. Ou seja, cada vez mais antigo e mais profundo em um universo com 13,7 bilhões de anos. O espectrógrafo nos ajudará a desvendar a composição e a estrutura de filamentos que ligam as galáxias. Sabemos que a maior parte da matéria do universo está nessa "teia cósmica", mas ainda há pouco conhecimento sobre ela.


Até agora, o projeto custou US$ 6 bilhões. Qual é a importância social de um investimento assim?
O Hubble realizou algo que nenhum outro experimento foi capaz de fazer. Levou o prazer das descobertas científicas para dentro da casa das pessoas em todo o mundo. Um exemplo banal: na capa de um dos álbuns da banda de rock Pearl Jam há uma imagem do Hubble. O projeto integrou a ciência à cultura. Pessoas que não se interessavam ficaram entusiasmadas com as novas descobertas. No próximo dia 9, vamos divulgar as fotos dos novos equipamentos instalados no Hubble. São lindas. Tenho certeza de que muitos brasileiros verão essas imagens no mesmo dia.


E quando o Hubble se aposentar?
Já estamos construindo o substituto: o telescópio espacial James Webb. Deverá ser lançado em 2014 e é muito diferente do Hubble. O espelho para captar a luz dos astros será maior: 6,6 metros. O do Hubble tem apenas 2,4. Além disso, o Webb não vai enxergar a luz visível. Registrará apenas as ondas com comprimento no intervalo do infravermelho, invisíveis aos nossos olhos. É a frequência da luz que chega dos lugares mais distantes do universo. Queremos observar os milhões de anos iniciais. Como o infravermelho é uma radiação quente, devemos evitar que o calor da Terra atrapalhe. Por isso, o Webb ficará a 1,6 milhão de quilômetros. O Hubble está a apenas 550 quilômetros de altura. Além disso, o infravermelho é capaz de atravessar a poeira do espaço. Conseguiremos ver melhor regiões "empoeiradas" como os berços de estrelas. Custará US$ 5 bilhões e, tenho certeza, valerá cada centavo investido.


Você escreveu um livro que, em breve, será publicado no Brasil: "Deus é um matemático?". Qual é a resposta a esta pergunta?
Não é uma questão simples. Antes de mais nada, não é uma pergunta sobre Deus, mas sobre a matemática. Como ela pode ser tão poderosa para descrever e, até mesmo, prever o que acontece e no universo? É algo que inventamos ou está lá fora e nós apenas a descobrimos? Em ambos os casos, surgem dúvidas ainda mais intrigantes. Se a matemática está só na nossa mente, como descreve tão bem o que acontece no universo? Se está lá fora no mundo, onde está exatamente? No meu livro, tento reunir reflexões de grandes matemáticos, filósofos e cientistas sobre esta questão.


E, para você, qual é a hipótese mais provável: está só na mente ou preexiste no mundo?
A matemática é uma compilação muito complicada de invenções e descobertas. Os homens inventam os conceitos. Mas depois descobrem como aplicá-los à realidade. Um exemplo: inventamos as regras do xadrez. Depois, realizamos verdadeiras descobertas sobre ele, coisas que não sabíamos quando formulamos as regras. A matemática é um pouco assim.


Mas de onde nasce a correspondência com a realidade?
A matemática que usamos para explicar a realidade não é arbitrária. Por exemplo, se quero inventar regras matemáticas para calcular quantos talheres coloco dentro de um copo, crio as regras de adição e subtração dos números naturais. Mas, se quero descrever qual o volume de água que consigo colocar no mesmo copo, seria inútil usar números naturais. A matemática que usamos para resolver problemas não é aleatória. Eu escolho a matemática que é capaz de resolver meus problemas reais.


Ao perguntar a origem das leis que vemos no universo, não caímos naturalmente na questão teológica?
Quando usei a palavra Deus no título do meu livro, imitei Einstein quando afirmava: "Deus não joga dados". Não era uma sentença sobre Deus, mas sobre o funcionamento do universo, que não é aleatório. Eu não acho que o universo tenha um propósito. O universo é governado por certas leis ou simetrias. Se o universo não fosse conduzido por leis ou simetrias, algo tão complexo como a vida não poderia ter surgido e não estaríamos aqui para formular esta questão. Sinceramente, não sei responder à pergunta: por que existem leis ou porque existem simetrias? Uma pessoa religiosa é livre para atribuir tal fundamento à Deus. Se você não é uma pessoa religiosa, dirá "eu não sei".

Publicado no portal do Estadão, em 19/08/2009.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Um tijolo é um objeto essencial?

Inspirado em uma postagem no blog da professora Marta Bellini, resolvi fazer o comentário ao final desse texto acerca do trecho de uma obra do físico Richard Feymann, que ela - a professora - extraiu da versão ibérica do livro que aqui transcrevo da versão brasileira. Portanto algumas palavras não são idênticas, mas os significados são notoriamente os mesmos.


"Eu sentava-me sempre com os físicos, mas ao fim de algum tempo pensei: 'Era agradável ver o que faz o resto do mundo e, por isso vou sentar-me durante uma semana ou duas em cada um dos outros grupos. Quando me sentei com os filósofos, ouvi-os discutir com muita seriedade um livro chamado Processo e Realidade de Whitehead. Utilizavam as palavras de maneira estranha e eu não conseguia entender muito bem o que diziam. Ora, eu não queria interromper a conversa deles para estar sempre pedindo que me explicassem qualquer coisa e, nas poucas ocasiões em que o fiz, eles tentavam explicar-me, mas eu continuava não entendendo. Por fim convidaram-me a ir ao seu seminário (...). O que lá aconteceu foi típico - tão típico que era inacreditável, mas verdadeiro. A princípio fiquei sem dizer nada, o que é quase inacreditável, mas também verdadeiro. Um aluno fez uma exposição sobre o capítulo estudado naquela semana. Nesse capítulo, Whitehead usava frequentemente as palavras 'objeto essencial' de um modo técnico particular, que tinha presumivelmente definido, mas que eu não compreendia. Depois de alguma discussão sobre o significado de 'objeto essencial', o professor que dirigia o seminário disse algo com o intuito de esclarescer as coisas e desenhou no quadro qualquer coisa semelhante a raios. 'Sr. Feynman', disse ele, 'diria que um elétron é um 'objeto essencial'?' Bem, agora eu estava em apuros. Admiti que não tinha lido o livro, pelo que não fazia ideia do que Whitehead queria dizer com a frase (...). 'Mas, disse eu, vou tentar responder à pergunta do professor se me responderem primeiro a outra pergunta, para que eu possa ter uma ideia melhor do que significa 'objeto essencial'. Um tijolo é um objeto essencial?' (...). Então vieram as respostas. Um indivíduo levantou-se e disse: 'Um tijolo é um tijolo específico, individual. É esse o significado de objeto essencial para Whitehead.' Outro afirmou: 'Não, não é o tijolo individual que é o objeto essencial; é a característica geral que todos os tijolos têm em comum - a sua qualidade de serem tijolos -, isso é que o objeto essencial.' Outro levantou-se e disse: 'Não, não está nos próprios tijolos. Objeto essencial significa a ideia que temos no nosso intelecto quando pensamos em tijolos'. Outro levantou-se e outro, e lhes digo que nunca ouvi antes maneiras tão diferentes e engenhosas de encarar um tijolo. E, exatamente como seria de esperar em todos as histórias sobre filósofos, acabou num caos completo. Em todas as discussões anteriores, nem sequer se tinham interrogado se um objeto tão simples como um tijolo era um objeto essencial, quanto mais um elétron. Depois disso, na hora do jantar, dirigi-me para a mesa da biologia. Tinha me interessado por biologia e estavam falavando de coisas muito interessantes (...)."

Trecho extraído de O sr. está brincando, Sr. Feymann?

O fragmento acima foi escrito pelo físico Richard Feymann. Ao contrário do que alguns afirmam, não é nenhuma manifestação anti-intelectual ou antifilosófica dele. Me parece mais um tipo de chamada de atenção, talvez algo com uma denúncia mesclada com um alerta, de como desenvolver o pensar coletivo. Por mais dísparas que possam ser as opiniões sobre um determinado tema, antes de mais nada precisamos estabelecer bases comuns de comunicação, para garantir que essa mesma comunicação seja feita inequivocamente. O método científico, que prefiro chamar de processo de fazer ciência, usa-se desse recurso. Não estou insinuando que deveríamos impor algum método à filosofia, ou a qualquer outro tipo de empreendimento intelectual. Está além disso. É o recurso (o da comunicação inequívoca) que a ciência empresta e utiliza. Um recurso indispensável para desenvolver qualquer processo de pensar coletivo. Caso contrário, o desenvolvimento intelectual não se desenrola, algo equivalente a se tentar construir o andar de um edifício sem ter concluído o andar de baixo. Básico!